sábado, 15 de setembro de 2007

João Ubaldo Ribeiro


A crônica que você vai ler a seguir mostra de maneira bem humorada os conflitos que surgem quando o conhecimento científico se vê frente a frente com os saberes populares.

Os comedores de baiacu

O baiacu, como haverão de saber os amáveis leitores, é o nome popular de alguns peixes aqui no Brasil (ou pelo menos em Itaparica; Itaparica é Brasil), geralmente da desagradável família dos tetradontídeos. Para ser mais claro, trata-se de um vulgar actinopterígio, teleósteo. da ordem dos plectógnatos, da já mencionada família tetradontídea e, julgo eu, na maior parte dos casos, é um exemplar da espécie em que Lineu tacou o nome de Lagocephalus lavigatus. Não sei por quê. Lineu tinha dessas coisas. Qualquer um que já viu um baiacu percebe logo que ele não pode ser um Lagocephalus e muito menos um laevigatus.

Mas, enfim, eis que o baiacu abunda nestas plagas. Outro dia mesmo, pescando mais Luiz Cuiúba, ferrei uns dez, tudo maiorzinho de um palmo, pescaria até boa, se fosse peixe que prestasse. Até os quatro dentinhos dele chateiam o vivente, porque só são quatro, como o nome da família indica, mais são navalhas, estropiam anzóis, às vezes cortam até os arames das paradas. E o miserável, ainda por cima é guloso, engole o anzol de vez e é um sacrifício para tirar tudo de lá de dentro. Para não falar que é metido a batalhador e então o sujeito está ali pedindo a Deus em vermelhinho, um dentão, uma xumberga, um beiju-pirá, uma coisa assim decente, e ai a vara verga, a linha estica e sai em disparada para o lado, peixe grande comeu! Comeu nada. O camarada sua, luta pra cá, luta pra lá, mete a mão na linha, faz diabo, e quem chega, sacudindo vergonhosamente a ponta da linha? Um baiacu. Não pode haver maior tristeza para quem já tinha garantido ao companheiro de pescaria que “esse bicho aqui na linha é uma sororoca e das grandes”.

Cuiúba não deixava que eu jogasse fora, os baiacus e, lá pelas tantas, havia uma pincha deles, ainda espadanando a pocinha do fundo da canoa.

- Ha-ha! – exclamou Cuiúba, brandindo facinorosamente a faca enferrujada, mas amoladissima, que ele sempre leva.

- Vou fazer filé de baiacu, que amanhã eu como uma moqueca!

E passou, com habilidade um tanto assustadora, a eviscerar, esfolar e desossar os baiacus, jogando “filé” atrás de “filé” para dentro do coifo. Alguns dos filés, inclusive, continuavam se batendo, não fibrilando como carne de cágado, mas se agitando esmo, quase como peixes vivos. Não creio que isso pode se tornar uma atração turística, nunca vi coisa mais esquisita. E meu dever, embora Cuiúba sabia mais de peixes do que quarenta delegados regionais do Sudepe, era fazer uma advertência. Nós, biólogos, temos obrigações sociais.

- Cuiúba, você esta maluco? Você vai comer isso? Isso é um Lagocephalus laevigatus! O famoso peixe venenoso, isso mata em poucas horas!

- Já tinha ouvido gente chamar isso de peixe-sapo, mais esse nome que você falo nunca ouvi falar – Disse Cuiúba, jogando outro filé na cesta.

- Um anfíbio anuro? – Disse eu. – não seja ridículo, isso é um Lagocephalus.

- Isto – disse Cuiúba, metendo a faca na barriga de mais um peixe – é um baiacu. É o melhor peixe do mar e eu vou comer tudo de moqueca.

- Mas você não sabe que o baiacu é venenoso?

- É para quem não sabe tratar. O veneno esta aqui – mostrou ele, cutucando uma bolinha entre as vísceras. – Tirando isso, fica logo o melhor peixe do mar.

- Mais você não sabe que de vez em quando morre um depois de comer baiacu, ás vezes famílias inteiras, e de gente acostumada a come baiacu?

- É, eu sei. Agora mesmo, semana passada, morreram quatro de vez, no Alto de Santo Antonio, só sobrou um quinto, que ainda esta passando meu no hospital. Eles comiam sempre baiacu, a velha fazia um escaldado com quiabo ótimo, eu mesmo comi lá várias vezes.

- E então? E ela não sabia dessa bolinha ai, não estava acostumada a tratar baiacu?

- Estava, estava. Mas ninguém está livre de uma distração, é ou não é? Uma distração assim... – e, ploft, outro filé no cesto.

- Cuiúba, deixe de ser doido, você pode morrer se comer esse negocio.

- Morro nada.

De volta ao mercado, procurei apoio na autoridade de Sete Ratos, peixeiro antigo, diz o povo que hoje rico, da venda de peixe. Com certeza ele dissuadiria Cuiúba daquela idéia tresvariada de comer baiacu. Encontro Sete Ratos em pé diante de uma banca, com as mãos metidas numa gamela, tratando peixe. Já era quase dez horas, passava da hora do almoço e era natural que ele estivesse ali preparando sua comida. Olhei para dentro da gamela, vi uns vintes baiacus miúdos.

- Sete Ratos, você vai comer baiacu?

- É o melhor peixe do mar!

- Mais essa desgraça é venenosa, você não sabe que é venenosa?

- Ah, é. Semana passada mesmo, morreram acho que quatro ou cinco, lá no auto. Família acostumadinha a comer baiacu, neste dia comera... É o desacerto.

- Eu sei, Cuiúba me contou. E eu que vinha aqui justamente para lhe pedir que tirasse da cabeça dele a idéia de comer uns filés de baiacu que a gente pescou.

-Ele esfolou o peixe? Tiro a pele? Tiro justamente o que dá gosto na moqueca? Tiro de frouxidão, foi isso, tirou de frouxidão! Hem, Cuiúba você tirou a pele porque acha que o veneno está na pele? Hem? Deixe de ser frouxo, rapaz, isso tudo é conversa, o veneno nunca esteve na pele, se fosse assim eu já era defunto.

- Eu sei – falou Cuiúba. – Eu tirei porque gosto de filé de peixe, mas eu sei que o veneno está naquela bolinha da barriga.

- Que bolinha da barriga, rapaz, tem nada de bolinha de barriga, isso tudo é conversa, tem nada de bolinha na barriga. Isso ai a pessoa tira porque ninguém vai comer tripa de peixe, só francês ou senão americano. O negócio é na hora do cozimento, ai tem de cozinhar direito!

- E você vai mesmo comer essa baiacuzada, Sete Ratos?

- Ora, é o melhor peixe do mar!

Saí por ali, conversei com Turrico, que, além de garçom, é bom pescador. Ele também é chegado a uma moquequinha de baiacu. Mas não é venenoso, Turrico? É, semana passada mesmo, no Alto... Mas só é venenoso nos meses que não tem r, no mês que tem r pode comer sossegado.

Mas Sete Ratos me disse que era no cozimento. E Cuiúba...

- Isso é tudo conversa, tudo conversa. Eu não deixei de comer baiacu nem depois que morreu uma parenta minha – uma não, duas, que eram velhas vitalinas e moravam juntas. Elas estavam acostumadas, faziam baiacu muito bem. Mas nesses dia...

- E então?

- E porque foi julho, Julho não tem r. Ou tem?

Está certo, pensei eu sem entender nada, enquanto me dirigia à casa de meu amigo Zé de Honorina, para pegar um feijãozinho atendendo a amável e generoso convite. Comentei com ele minha perplexidade.

- Que coincidência! – disse ele alegremente. – Comadre Dagmar está ai justamente preparando uma moqueca de baiacu.

- Ah, desculpe, Zé, mas eu não como baiacu.

- Besteira sua, é melhor peixe do mar. Agora não se pode negar que é venenoso. Semana passada mesmo, no Alto...

-Eu soube, eu soube. E você vai comer assim mesmo?

-Claro que vou, mas não se preocupe, que eu mandei preparar uma garoupinha para você, separada.

Entre limões, mão de coentro, pilhas de cebola, olho, malagueta e tomates, Dagmar dava os últimos retoques na moqueca de baiacu. Aproximei-me, estava tudo muito cheiroso. Observei como aquela sua moqueca da baiacu era famosa, como Zé tinha confiança em comer aquele peixe venenoso quando era ela quem o preparava. Qual o segredo para tratar o baiacu?

Ah! Não sei – disse ela. – Eu mesma não como.

RIBEIRO, João Ubaldo. Os Comedores de baiacu.
In: Arte de roubar galinha: crônicas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.45 -9.

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